Entrevista: Volume de toneladas de comida desperdiçada no setor da hotelaria “torna-se ambientalmente insustentável”
“Embora o setor da hotelaria não seja o maior responsável pelo desperdício em termos absolutos, o impacto que gera é desproporcional ao seu volume de operações”, diz Cristina Siza Vieira, Vice-presidente executiva da AHP, em entrevista à Green Savers. Os hotéis representam cerca de 0,5% das refeições servidas globalmente, mas são responsáveis por aproximadamente 3% do desperdício alimentar mundial, sobretudo devido a pratos devolvidos ainda cheios e porções excessivas, muitas vezes em buffets. Com uma pegada de carbono já relevante no turismo, cada quilo de alimento desperdiçado traduz-se em impacto ambiental desde a produção até ao descarte.
Para a responsável, “discutir o desperdício alimentar na hotelaria significa atuar num setor estratégico e visível, com capacidade de liderar pelo exemplo”. Entre os desafios estão a cultura da abundância, a dificuldade de gestão da procura, falhas de comunicação entre equipas e a ausência de medição estruturada do desperdício. A introdução de sistemas de controlo, tecnologias inovadoras e boas práticas de doação são passos essenciais para reduzir perdas e promover sustentabilidade ambiental e económica.
A conversa surge a propósito da Conferência da Associação da Hotelaria de Portugal, que reforçou a urgência de uma ação imediata e revelou alguns dados sobre a atual situação no mundo e em Portugal, suportados pelo último “Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos” (2024). A nível global, desperdiçam-se mais de um milhão de toneladas de alimentos por ano, o equivalente a 19% dos alimentos disponíveis para consumo, enquanto 2,3 mil milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar.
Quanto a Portugal, o país está na quarta posição dos países que mais desperdiçam no mundo, com 184 kg de alimentos deitados ao lixo por cada pessoa ao ano, um valor muito acima da média global (79 kg) e europeia (130 kg).
Embora representem menos de 0,5% das refeições servidas no mundo, os hotéis geram cerca de 3% de todo o desperdício alimentar global, contribuindo para 185 milhões de toneladas de CO₂ por ano.
Qual a importância de discutir o desperdício alimentar especificamente no setor da hotelaria, quando este problema afeta toda a sociedade portuguesa?
Embora o setor da hotelaria não seja o maior responsável pelo desperdício em termos absolutos, o impacto que gera é desproporcional ao seu volume de operações. Os hotéis representam cerca de 0,5% das refeições servidas globalmente, mas são responsáveis por aproximadamente 3% do desperdício alimentar mundial, o que mostra que a sua taxa de desperdício está acima da sua “quota” de produção. Grande parte deste desperdício provém dos pratos que regressam à cozinha ainda cheios de comida, um fenómeno intimamente ligado à cultura da abundância nos buffets e às porções excessivas.
Sendo o turismo uma atividade que já possui uma pegada de carbono relevante, o volume de toneladas de comida desperdiçada torna-se ambientalmente insustentável, uma vez que cada quilo de alimento desperdiçado se traduz em emissões desde a produção até ao descarte.
Sendo o turismo uma atividade que já possui uma pegada de carbono relevante, o volume de toneladas de comida desperdiçada torna-se ambientalmente insustentável, uma vez que cada quilo de alimento desperdiçado se traduz em emissões desde a produção até ao descarte
Por isto, discutir o desperdício alimentar na hotelaria significa intervir num setor estratégico, visível e com capacidade de liderar pelo exemplo.
O Relatório do Índice de Desperdício Alimentar revela dados preocupantes sobre Portugal. Que desafios específicos identifica para os hotéis na redução do desperdício?
A hotelaria enfrenta desafios muito próprios quando se trata de reduzir o desperdício alimentar. Um dos seus principais desafios é a cultura profundamente enraizada da abundância, especialmente nos buffets, onde a “mesa cheia” é entendida como sinónimo de boa hospitalidade. Outro desafio está relacionado com as porções excessivamente grandes, o que aumenta a quantidade de comida que retorna à cozinha. A gestão da procura é igualmente difícil, devido à grande volatilidade da ocupação, das reservas de grupos e de eventos. Falhas de comunicação entre equipas de reservas, receção e cozinha levam frequentemente a compras feitas “por precaução”, gerando excedentes.
A hotelaria enfrenta desafios muito próprios quando se trata de reduzir o desperdício alimentar. Um dos seus principais desafios é a cultura profundamente enraizada da abundância, especialmente nos buffets, onde a “mesa cheia” é entendida como sinónimo de boa hospitalidade
Existem também muitos hotéis que não dispõem de sistemas estruturados de medição do desperdício, e aquilo que não é medido não pode ser gerido. A ausência de inventários rigorosos e de rotinas de controlo de stocks contribui para os alimentos passarem do prazo de validade.
A doação continua pouco estruturada, com cerca de um terço dos hotéis envolvidos em programas ativos, condicionada por questões logísticas e de segurança alimentar. Unidades hoteleiras em zonas remotas enfrentam ainda mais barreiras devido à necessidade de manter grandes stocks de segurança. Finalmente, a falta de formação contínua das equipas em conservação, reaproveitamento ou doação coloca a cozinha como um dos principais pontos críticos de desperdício.
Que soluções práticas e inovadoras destacaria já implementadas em hotéis portugueses, que possam servir de exemplo para outros estabelecimentos do setor?
Um caso particularmente relevante é o de um resort all-inclusive que implementou um sistema de inteligência artificial para identificar e quantificar o desperdício em diferentes etapas: preparação, empratamento, buffet e restos deixados pelos clientes. A medição diária permitiu ajustar menus, porções e modos de serviço, alcançando reduções de cerca de 35% em quatro meses e de 30% ao fim de um ano. Este caso mostra o impacto da combinação entre tecnologia, envolvimento das equipas e cultura organizacional orientada para a sustentabilidade.
Um caso particularmente relevante é o de um resort all-inclusive que implementou um sistema de inteligência artificial para identificar e quantificar o desperdício em diferentes etapas: preparação, empratamento, buffet e restos deixados pelos clientes
Também existem grupos hoteleiros que começaram a separar e a medir sistematicamente os resíduos orgânicos, comparando o desperdício pelo número de clientes. Esta prática facilita a análise do desempenho de cada hotel e apoia decisões sobre buffets, horários e menus.
Outro exemplo importante é a integração de sistemas POS e de gestão de stock, permitindo compreender exatamente o que entrou na cozinha, o que foi vendido e o que sobrou, facilitando previsões de compras e reduzindo o desperdício por excesso de aprovisionamento. A reformulação de menus e a aposta em formatos de produto mais ajustados às necessidades dos hotéis também têm ganho destaque. Trabalha-se com ingredientes sazonais, reutilizam-se bases e excedentes em novas preparações e adapta-se o tamanho das embalagens ao real consumo das unidades.
Há hotéis até que já estruturaram programas de doação de excedentes em condições de segurança, garantindo fluxos consistentes entre hotéis e instituições sociais.
A conferência abordou a “hotelaria circular”. Pode explicar de que forma este conceito pode transformar a gestão de alimentos dentro dos hotéis?
A hotelaria circular assenta nos princípios da economia circular, propondo uma mudança do modelo linear tradicional, comprar, cozinhar, servir, descartar, para um modelo fechado, onde os recursos são mantidos em circulação pelo maior tempo possível.
Os resíduos inevitáveis devem ser valorizados, quer através da separação para compostagem ou para outros processos de valorização orgânica. Assim, a hotelaria circular transforma o desperdício de “inevitável” em “falha de sistema”, incentivando a revisão profunda de processos e mentalidades
Na prática, isto implica prevenir o desperdício desde a origem, com um planeamento rigoroso de menus, buffets, compras e com o ajuste de embalagens e formatos fornecidos pelos parceiros. Significa também maximizar o uso interno dos alimentos, reaproveitando sobras seguras em refeições para colaboradores, bases culinárias ou novas preparações. Sempre que existam excedentes próprios para consumo, estes devem ser encaminhados para doação através de protocolos estruturados que garantam segurança e rapidez. Os resíduos inevitáveis devem ser valorizados, quer através da separação para compostagem ou para outros processos de valorização orgânica. Assim, a hotelaria circular transforma o desperdício de “inevitável” em “falha de sistema”, incentivando a revisão profunda de processos e mentalidades.
Como é que a Associação da Hotelaria de Portugal apoia os seus associados na adoção de práticas mais sustentáveis e na diminuição do desperdício alimentar?
A Associação da Hotelaria de Portugal (AHP) apoia os seus associados através de vários programas e iniciativas. Entre eles destaca-se o Programa HEART by AHP, que promove a economia circular ao recolher e redistribuir bens e equipamentos hoteleiros usados, mas ainda em boas condições, para instituições privadas de solidariedade social (IPSS).
Além disso, assume um papel importante na sensibilização do setor, organizando conferências, debates e momentos de partilha de boas práticas, trazendo dados concretos, parceiros e casos de sucesso. Partilha igualmente estudos de caso e experiências de hotéis pioneiros, para inspirar outras unidades a adotar medidas semelhantes. Por fim, reforça a necessidade de alinhamento com as metas nacionais e europeias para a redução do desperdício, lembrando que em Portugal, cada pessoa desperdiça 183 kg de alimentos por ano.
De que forma é que parcerias como aquela que têm com a Too Good to Go e empresas do setor alimentar podem gerar impacto concreto na redução do desperdício?
Parcerias com plataformas como a Too Good To Go têm um impacto direto na redução do desperdício alimentar. Estas iniciativas criam canais eficientes para o escoamento de excedentes alimentares que permanecem próprios para consumo, permitindo que os hotéis os disponibilizem a preços reduzidos ou através de processos simplificados de recolha. As ferramentas digitais destas plataformas tornam o processo mais fácil e apelativo, eliminando a complexidade logística e incentivando mais hotéis a aderirem. Para além disso, estas entidades trazem conhecimento, formação e dados que permitem aos hotéis evoluir mais rapidamente.
Parcerias com plataformas como a Too Good To Go têm um impacto direto na redução do desperdício alimentar. Estas iniciativas criam canais eficientes para o escoamento de excedentes alimentares que permanecem próprios para consumo, permitindo que os hotéis os disponibilizem a preços reduzidos ou através de processos simplificados de recolha
Ao nível da oferta, parcerias com empresas da cadeia alimentar, como o Recheio fornecedores como o Recheio levam a que estes ajustem formatos de produtos e embalagens às necessidades reais dos hotéis, contribuindo para reduzir o desperdício logo na fase de aprovisionamento.
Estas parcerias geram benefícios ambientais significativos, poupança económica e reforçam a imagem dos hotéis como instituições responsáveis e inovadoras.
Os dados do INE indicam que cada português desperdiça cerca de 182,7 quilos de alimentos por ano. Considerando o desperdício per capita elevado no país, que iniciativas poderiam alterar hábitos de consumo, tanto dos hotéis como dos clientes?
Para enfrentar os elevados níveis de desperdício alimentar em Portugal, é fundamental promover iniciativas que alterem comportamentos tanto no interior dos hotéis como na sociedade.
Nos hotéis, é essencial redesenhar a gestão dos buffets para reduzir a exposição excessiva, optar por reposições mais frequentes e apresentar porções mais pequenas com possibilidade de repetição. A comunicação direta com os hóspedes, através de mensagens pedagógicas nos buffets e nas unidades hoteleiras, ajuda a criar consciência sobre o impacto do desperdício alimentar. A formação das equipas é igualmente determinante, garantindo que todos, da cozinha à sala de refeições, compreendam o papel que desempenham na prevenção do desperdício. A medição contínua dos resíduos e a definição de metas reforçam o compromisso interno.
Nos hotéis, é essencial redesenhar a gestão dos buffets para reduzir a exposição excessiva, optar por reposições mais frequentes e apresentar porções mais pequenas com possibilidade de repetição
Junto dos clientes e da comunidade, os hotéis podem promover workshops, showcookings e ações de sensibilização sobre a importância do reaproveitamento dos alimentos. Incentivos positivos, como menus “zero waste” ou opções de meia porção, também ajudam a mudar hábitos.
Quais os maiores obstáculos?
Entre os maiores obstáculos à redução do desperdício alimentar destaca-se a cultura da abundância, profundamente enraizada tanto entre clientes como entre equipas. Muitos hóspedes associam hospitalidade ao excesso visual e à grande variedade, sobretudo nos buffets. O comportamento dos clientes também é um desafio, com tendência para encher o prato por receio de faltar comida ou pelo desejo de experimentar tudo o que está incluído no buffet.
Entre os maiores obstáculos à redução do desperdício alimentar destaca-se a cultura da abundância, profundamente enraizada tanto entre clientes como entre equipas. Muitos hóspedes associam hospitalidade ao excesso visual e à grande variedade, sobretudo nos buffets
A falta de dados é outro entrave significativo. Sem medição rigorosa, o desperdício torna-se invisível e, por isso, difícil de gerir. A resistência interna à mudança, motivada por rotinas antigas e receio de afetar a satisfação do cliente, dificulta a implementação de novas práticas.
Questões legais e logísticas relacionadas com a doação, bem como a necessidade de grandes stocks de segurança em hotéis remotos, também contribuem para aumentar o risco de desperdício.
Questões legais e logísticas relacionadas com a doação, bem como a necessidade de grandes stocks de segurança em hotéis remotos, também contribuem para aumentar o risco de desperdício
Ainda assim, a mensagem principal é clara: existem soluções testadas, o retorno económico é significativo (por cada euro investido na redução do desperdício, pode gerar até sete euros de retorno) e as metas nacionais e internacionais exigem ação rápida. A hotelaria tem todas as condições para liderar a mudança e demonstrar que reduzir o desperdício alimentar é possível, rentável e essencial para o futuro do planeta.
in Green Savers