Trabalhar o máximo, ganhar o mínimo
Olha a selfie barata!" "Pauzinho de selfie?" "Selfie stick?" O pregão não varia muito junto ao Mosteiro dos Jerónimos. Do lenço "típico português" fabricado no Bangladesh, passando por pêssegos paraguaios até cabos extensíveis para o autorretrato, tudo é negócio quando o assunto é turismo. Três amigos lituanos aguardam os 40 minutos da praxe para visitar o monumento. "Nada que não aconteça em qualquer outra grande cidade europeia, com a diferença de que aqui corremos maior risco de insolação", comentam, apetrechados de lenços e bonés. Estão hospedados na Baixa lisboeta, "onde uma senhora muito amorosa cozinha para todos". Atendimento familiar na era do turismo de massas? É de elogiar. Mas o Turismo de Portugal (TP) está preocupado com a formação dos trabalhadores. "Falamos sempre da promoção mas esquecemo-nos de que há uma parte de back office [bastidores] que é importante acautelar", avisa o presidente, Luís Araújo. O sector tem crescido 3% ao ano, aumentou 20% em receitas e vale 11% do PIB. Mas, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), a remuneração média dos trabalhadores nas áreas do alojamento, restauração e similares é de €614. Entre 2015 e 2016, o emprego a prazo acelerou e os salários médios caíram. São eles, no entanto, que fazem o turismo acontecer na rua, e a mais recente análise do TP indica que 60% dos trabalhadores do sector têm o ensino básico. "Mesmo assim, temos os resultados que temos. Imagine-se como seria se tivessem formação", sugere o responsável, revelando que o objetivo é reverter o cenário.
"Até 2027, queremos que 60% das pessoas tenham o ensino secundário ou técnico-profissional." Óleo na máquina Numa das casas mais concorridas de Lisboa, a dos Pastéis de Belém, a experiência parece valer mais do que a formação. E o TP também sabe disso: "Posso ter uma pessoa com o ensino básico e um atendimento cinco estrelas. Tem que ver com a atitude", sublinha Luís Araújo. Uma funcionária conduz os turistas às mesas, um segurança vigia o espaço, um guia atesta que pastéis "como os de Belém não há" e quatro funcionários circulam de bandeja na mão. Todos bem-dispostos, todos poliglotas, como numa orquestra. "Vítor, olha a mesa 23."
"Ana, viste a 28?" Durante a época alta, é assim todos os dias, das oito da manhã à meia-noite. Lisboa não é Nova Iorque, mas não é fácil trabalhar numa cidade que já dormiu mais. Fosse este o compasso daqui a 1500 metros, junto à Torre de Belém, o segundo monumento mais visitado do país, que tem capacidade para receber 120 pessoas de cada vez. Uma hora de espera depois, John surpreende-se: "Não sou nada bom em filas, mas aqui não estou tão tenso quanto deveria." Talvez o violonista que intercala Andrea Bocelli com o 'Despacito' ajude. Mas, sob o desespero de um sol que mói, assim que o britânico percebe que há uma segunda fila a andar mais rápido (destinada a quem tem bilhetes pré-comprados), a conversa é outra: "Isto é completamente ridículo! Comprámos o Lisboa Card, que, no fundo, é um bilhete e temos de estar aqui este tempo todo, porque não nos informaram devidamente!" Os italianos já desistiram, os espanhóis reclamam, furiosos. Duas horas e meia e quatro 'Despacitos' depois, entramos, com a resposta: "Multibanco fora de serviço." "Temos problemas de rede", reage, seca, a funcionária. Entregamos a carteira de jornalista, mas o documento não consta "no protocolo". A solução, após alguma insistência, é entrar como residente em Lisboa.
A rotatividade da bandeja
Se a ideia, depois de pouca água, é experimentar o vento de um tuk-tuk até ao Chiado, o condutor é honesto e aconselha, em inglês: "Temos um preço único, de 20 euros. Estando sozinha, é melhor ir de táxi." O taxista, também dominando a 'língua global', reage aos pedidos de informação sobre Lisboa. "Temos de saber falar línguas. Inglês, especialmente, embora eu só tenha aprendido francês na escola." Explica como funciona o taxímetro e aconselha um restaurante nas costas do Teatro de São Carlos, onde nos cobram indevidamente o couvert mas atendem com profissionalismo. Concluído o repasto, o café, claro, é n'A Brasileira. Há um lugar livre, cinco empregados de mesa, quatro dos quais terão entre 18 e 22 anos.
Em 2010, os trabalhadores desta casa histórica iniciaram uma série de protestos contra o não cumprimento dos seus direitos, acusando a administração de questões como a alteração diária do horário de trabalho. Sete anos depois, os funcionários são outros - a rotatividade, aqui como em tantos outros estabelecimentos de restauração, é elevada - mas o ordenado mantém-se "uma miséria", reconhece Ivan, de 42 anos, com 20 de experiência no sector, que ganha o salário mínimo desde que integrou o clássico pessoano, há seis anos. Não foge muito à média apurada pelo INE. O que salva as contas, muitas vezes e off the record, são as gorjetas.
Entretanto, o número de hóspedes aumentou para 9,35 milhões no primeiro semestre e começam a faltar trabalhadores, sobretudo nas áreas de atendimento (ler entrevista ao lado). "É preciso passar a mensagem de que o turismo não deve ser uma segunda opção. Ir para uma escola ou para um politécnico de turismo não é porque a pessoa tem menos capacidades e sim porque reconhece que terá um maior futuro", defende o presidente do TP.
Para Ivan, há 20 anos, o futuro era hoje ter um ordenado de 557 euros para dar conta de um "trabalho pesado". "Há pessoas que não têm estofo para isto", garante. "É preciso gostar, ter força de vontade, ser simpático e bem-educado. E quando digo isto é com base naquilo que os meus pais me ensinaram", explica o funcionário, que sintetiza assim o restante processo de formação: "Chega e desenvencilha-te."
Porto: um "atendimento impecável"
Segunda-feira, ao início da tarde, a Baixa do Porto fervilha. A fila de 70 metros e 200 pessoas impressiona em frente à Lello, a livraria de fachada neogótica inspirada no Mosteiro da Batalha. Na loja que serve de base à bilheteira, Sara dobra camisolas e recoloca adereços no lugar. Está aqui há dois meses, tem cara de miúda mas revela-se experiente. Responde com facilidade às perguntas que lhe colocámos e não se inibe de aconselhar monumentos. "A fila é grande, mas não assusta e anda depressa. Quem comprar agora terá de esperar, pelo menos, meia hora", esclarece, com simpatia. E os dois meses de experiência? "Excelente, mais gratificante que o emprego anterior", responde. Olha, o turismo a fomentar a mobilidade laboral.
A madrilena Elsa regressa da bilheteira com quatro entradas. É uma repetente na Lello, desta vez está com três amigas. "Vale a pena a espera? Claro, porque a livraria é imperdível", responde. Mas reconhece que filas daquelas só as encontra quando vai esquiar para a Serra Nevada. Uma família brasileira acolhe um bebé que dorme no carrinho. "Incómodo é só quando os automobilistas desatam a buzinar", confessa a mãe, Solange. E como tem sido o atendimento nos estabelecimentos e transportes? "Até agora, impecável, o pessoal é muito atencioso." À sua frente, o italiano Giovanni nota que "alguns museus e espaços comerciais fecham muito cedo, mas os funcionários são sempre cordiais e prestáveis". Na praça de tuk-tuks dos Loios, Ana Rita combina um circuito pelo centro histórico com um casal de italianos.
Afivelamos um ar de turista francês com dúvidas e desconfianças para testar a simpatia. Ana Rita revela-se uma boa conversadora. Imperturbável, explica as opções e garante "que mais silencioso e cómodo do que o tuk-tuk não há", com a vantagem adicional de circular por vielas, chegar a sítios interditos a outros meios e de ficar a saber tudo sobre os monumentos por onde se passa. Eis a deixa para um segundo teste: "Explique, então, a origem da Sé Catedral." Ana Rita não desarma e inicia a narrativa.
Metro e cruzeiros
É ainda na pele de turista francês que nos dirigimos ao Tourism Point, na Rua Mouzinho da Silveira, com duas perguntas engatilhadas: que monumentos se deve visitar e como chegar ao aeroporto? Alicia saca de mapas e começa por sugerir e sinalizar a Torre dos Clérigos, a Sé, o Palácio da Bolsa e o Mosteiro de São Bento da Vitória, que lhe sugere uma afetividade especial. No caso do aeroporto, defende que o metro é a melhor opção, explicando como proceder, já que a rede é, por vezes, fator de inquietude para os turistas. Alguns dizem que é preciso um curso para circular nela e que não encontram quem forneça informações nas estações. Na estação de metro de São Bento, de facto, não existe pessoal de apoio.
Os poucos turistas que circulam denotam desorientação. A exceção é um casal japonês que lida com a máquina com destreza e sabedoria. Os residentes sabem que pessoal de apoio só em estações centrais, como a Trindade ou a Casa da Música, e que nem sempre as máquinas permitem a compra do Cartão Andante ou devolvem o troco da operação. Na Ribeira, é a grande invasão. Bares e esplanadas cheios, é um São João em pleno agosto. Circular é difícil, mas o movimento só é caótico junto ao acesso aos cruzeiros no momento do embarque à procura do melhor lugar. O Chez Lapin é um clássico da restauração local. Pouco depois das três da tarde é ainda hora de ponta.
Ocupámos a única mesa livre e logo chega Leandro, que nos entrega a lista e sugere polvo ou bacalhau, regressando à copa em corrida. Perguntamos se o pessoal é suficiente. "Sim, se o movimento é mais concentrado despachamos mais depressa. O normal é as mesas estarem todas ocupadas", responde Leandro. Depois de um passeio junto ao Douro, é altura de regressar à Praça da Liberdade para uma cerveja vespertina.
No Petisco da Liberdade, o movimento é pouco intenso, mas ainda assim duas mesas esperam minutos pelo atendimento. A empregada desaparecera no interior da cervejaria, mas ninguém dá sinais de impaciência ou azedume. O tempo é de férias. Maurice inspeciona o chapéu de cortiça que comprara na Prometeu Artesanato. "Portugal é o país da cortiça, não é verdade?", justifica-se. E como têm sido atendidos? "Sempre muito bem", responde o francês, que dá "nota máxima" à degustação de Vinho do Porto, à incursão pelas caves e ao passeio pelo centro histórico, "conduzido por um senhor chamado Lapin (Coelho)". Como é bela a vida de turista no Porto!
'TURISTIFICAÇÃO'
53,5 milhões de dormidas foram registadas em Portugal em 2016. No primeiro semestre deste ano, foram mais de 25 milhões, uma subida de 9,6% relativamente aos primeiros seis meses do ano passado
52 mil novos empregos foram criados no sector este ano, segundo dados do INE, que não considera atividades como a animação turística ou a organização de eventos
89% é a taxa de empregabilidade dos alunos das escolas do Turismo de Portugal. No caso dos cursos de cozinha, a percentagem sobe para 100
das pessoas que trabalham no sector têm o ensino básico, de acordo com a análise feita no âmbito da Estratégia Turismo 2027. O Turismo de Portugal quer que, daqui a dez anos, 60% dos profissionais tenham o ensino secundário ou técnicoprofissional
614 euros é o rendimento médio líquido no alojamento, restauração e similares, segundo o INE. Na hotelaria, separadamente, a AHP indica um valor superior a €1000
"O sector quer mais atitude. Os alunos das nossas escolas vão ter aulas de teatro, expressão corporal, storytelling, e vamos reforçar os idiomas. É importante haver formação, mas tem de ser a certa"
Luís Araújo
"Temos de continuar a apostar nas áreas de serviço ao cliente, porque é através dele que conseguimos fidelizar/ captar e manter turistas"
Raul Martins, Presidente da Associação da Hotelaria de Portugal
"O crescimento sustentável do turismo reflete-se em aumentos mais expressivos no valor gasto por cada turista do que no número de hóspedes, bem como no crescimento da atividade em todas as regiões"
Ana Mendes Godinho Secretária de Estado do Turismo
Raul Martins Presidente da Associação da Hotelaria de Portugal (AHP)
"A rotatividade não é um drama"
A AHP quis apurar o salário dos trabalhadores junto dos mais de 600 associados para demarcar a hotelaria do resto do sector. Encontrou um ordenado médio de €1035, mas concorda com o Turismo de Portugal: a falta de profissionais qualificados é uma preocupação. Arrancaram, por isso, este mês, com a AHP Hotel Academy, nas zonas que mais precisam: Norte, Centro e Alentejo.
Faltam pessoas qualificadas para trabalhar no turismo?
Por força do aumento da oferta de empreendimentos e da procura, há necessidade de mais profissionais. E as escolas de hotelaria não têm capacidade para responder a este aumento. Estamos preocupados que possam aparecer profissionais não habilitados para cumprir determinadas funções. Se o crescimento da procura continuar - e este ano aumentámos 10% em relação a 2016 o número de dormidas e 20% em receitas - é natural que haja alguns profissionais sem formação. Portanto, nada melhor do que antecipar esse risco.
É preciso formar em que áreas?
A formação de uma empregada de quartos, por exemplo, faz-se no próprio papel, segundo as normas do hotel. Agora, naturalmente que um cozinheiro tem de vir formado de uma escola. Já não há à frente de uma cozinha uma senhora que cozinha bem, sem formação. Talvez aconteça na província ou, então, só em restaurantes é que isso será mais possível. Um hotel também não admite um empregado de mesa que não tenha formação. Mas é claro que às vezes aparecem profissionais formados noutras áreas, como é o caso do marketing, e que se podem encaixar em diferentes funções da hotelaria.
Quais são as maiores necessidades, em termos de trabalhadores, do sector?
Nas habilitações mais elevadas é onde há menos falta, porque as pessoas com poucas qualificações são cada vez menos. Por isso é que ao nível de empregados de limpeza e de quartos temos imensos estrangeiros [fora dos principais meios urbanos, o levantamento da AHP aponta para a carência de pessoas que dominem idiomas como o inglês, para ocupar funções de receção].
Muitas vezes o sector é visto uma área em que é fácil encontrar trabalho e não tanto para seguir carreira.
Há pessoas que querem ter mais desafio e dificuldades e sentem-se pouco valorizadas nestas situações. Há imensas pessoas que fazem cursos de gestão em hotelaria, mas não temos hotéis suficientes para todos serem diretores. O que lhes aparece é [a oferta de] rececionista. Mas depois passam para subchefe e chefe de receção. Têm de fazer uma carreira. Como se costuma dizer, na tropa não se começa general.
As empresas estão preparadas e dispostas a pagar de acordo com a formação que exigem aos profissionais?
Claro que sim. E o que acontece muito é a progressão na carreira dentro do próprio estabelecimento, porque os empresários preferem ter gente que conhece as condições, os hábitos, a maneira de trabalhar da empresa. Por força da rotatividade do pessoal, os melhores têm mais probabilidade de aumento [do ordenado].
Como se combate a alta rotatividade?
A rotatividade não é um drama, tem inconvenientes e vantagens. As pessoas ficarem toda a vida no mesmo local não é necessariamente bom; é preciso renovar.
Quiseram estudar o panorama salarial da hotelaria para se demarcarem dos €614 pagos, em média, no sector?
Sim, quisemos fazê-lo porque as estatísticas não discriminam os subsectores [o INE traça um retrato global do alojamento, restauração e similares]. Questionámos empreendimentos turísticos de todos os níveis e pessoal nas diferentes funções [entre maio e agosto] e chegámos, assim, a uma média de €1035 mensais.
Diz que é preciso existir um limite de alojamentos. Qual é o número razoável?
Acho que em cada bairro não deveria haver mais do que 25 a 50% da área de construção para o turismo. Se não, corre- -se o risco de descaracterizar as cidades. Até os turistas em Barcelona já acham que há turistas a mais. E nós, quando vemos a casa dos outros a arder, temos de olhar para a nossa. Ainda assim, estamos muito abaixo de cidades como Barcelona, Londres ou Paris em termos de percentagem de turismo.
in Expresso, por Abílio Ferreira e Rute Barbedo